sábado, 10 de junho de 2023

Meu sovaco cresceu

 

Dia desses achei algumas velhas notas fiscais da farmácia. Constatei algo incomum, misterioso, catastrófico: meu sovaco cresceu.

Fiz contas de somar, multiplicar, diminuir e dividir, usei o bom e velho “novesfora”, e percebi que até pouco tempo eu comprava, mensalmente, um ou dois frascos a menos de desodorante.

No país em que notórios criminosos são tratados como suspeitos e inocentados mesmo após a decisão penal condenatória ratificada em várias instâncias, e onde vige o proveitoso e imprescindível Código de Defesa do Consumidor, seria impossível responsabilizar judicial e civilmente as instituições regulatórias, porque são democráticas de direito e continuarão funcionando para todo o sempre (amém!).

Muito menos será culpada a multinacional de produtos de higiene pessoal que, dentre suas inúmeras preocupações com as causas sociais, fez lobby para acabar com o sofrimento de militantes com a pobreza menstrual, exigindo de seus pupilos estrategicamente incrustados no Congresso, que lutem (como uma garota!) para que o Estado supra essa deficiência.

É só coincidência o fato desses produtos estarem disponíveis para pronto atendimento da grande demanda gerada, como todas as coincidências com as necessidades urgentes de um Estado preocupado com a população, como um dia foi a gloriosa tomada de três pinos.

Tudo, sempre, pelo bem da população e do consumidor!

Afinal, grandes empresas devem estar sempre alertas para tais situações.

Além disso, não se espera outra coisa do pessoal do marketing que prega o respeito à Amazônia, à humanidade, às tão sofridas minorias, que não o respeito aos direitos da clientela, até porque poderiam se ver submetidas à rigorosa admoestação das personalidades iluminadas e supremacistas que azeitam a máquina pública, cujas instituições, repito, funcionam muito bem, obrigado.

Sim, empresas que prezam pela filantropia estão acima de qualquer suspeita, elas exigem que o mundo seja um lugar melhor – pouco habitado, onde todo idoso para gozar do direito de viver deve ser milionário e poucos possuam propriedades, sem doenças, pois erradicadas por vacinas, sem religião, mas com religiosidade, e com pervertidos sem sexo definido.

Por isso é ilógico pensar em diminuição da quantidade dos produtos ante a manutenção de preços ou a lesão deliberada ao consumidor. Não custa relembrar a existência de instituições e do Código protetor, tão zelosos, além da agenda ESG aplicada pelas próprias organizações, extremamente éticas, atuando para desencorajar essa prática.

Voltando ao ponto inicial, após distração provocada por tanta bondade e generosidade, cabe a mim, mero mortal de uma vida miserável que espera a salvação em Cristo, ajoelhar e pedir a Deus para impedir que o sovaco (ou subaco) continue crescendo, pois não teria lugar para guardar tantos frascos em minha humilde residência. (Que em breve poderá deixar de ser minha.)

João Capado e o Benfica Freyre Club

 

- Priiiiii! Priiiiii! Priiiiiiiiiiii!

Maninho ouvia o apito final e saía de campo desolado: o Benfica Freyre Club acabava de levar outra piaba, agora de 5x1 para o Noroeste de Altos e Baixos.

Acabara de assumir o time, mal tivera tempo para conhecer os jogadores. Repetiu a escalação do técnico anterior por achar que o conjunto falaria mais alto na hora de enfrentar um dos lanternas do campeonato.

Não conseguia entender como aquele time, com um elenco formado de grandes jogadores, não conseguia emplacar.

João Carlos Marques, o técnico substituído, era endeusado pela imprensa local, e o presidente do time era o Prefeito, sem o qual o desenvolvimento jamais teria chegado àquelas bandas, e talvez nem houvesse um campeonato tão concorrido, dada a grandeza dos escretes que ele montava sem poupar dinheiro. O seu próprio dinheiro, diga-se.

Não havia como explicar que o time com os melhores jogadores, a maior estrutura, os melhores salários, as maiores regalias, os maiores patrocínios, pudesse patinar no meio da tabela, protagonizando apresentações vergonhosas em sua sede, talvez um dos melhores estádios – e gramados – do Estado.

No dia da reapresentação, antes mesmo do treino tático, ele chamou um por um dos jogadores e perguntou o que eles achavam do que estava acontecendo. Várias foram as informações colhidas, mas a principal veio de dois jogadores: Fubazinho, um garoto que era o craque do time, e Espeto, o jogador mais experiente.

Fubazinho disse que João Carlos Marques insistia em colocá-lo como segundo homem de campo, indo e voltando para marcar, quando a sua principal arma, aquilo que fizera a sua fama, era a visão de jogo, a enfiada de bola e o ataque fulminante, pois chutava com as duas, uma de cada vez, logicamente.

Espeto disse que o antigo treinador parecia escalar o time para perder. Ele entendia que o “professor” agia assim apenas para atingir o Prefeito, que era um político conservador muito querido na região, mas adversário político do Sr. Tobias, um trotskista inveterado que ajudara a criar João Carlos Marques, cujo pai era alcoólatra, batia em sua mãe e não evitou que alguns de seus irmãos morressem de inanição.

O seu Tobias cuidara bem do menino, mas sentia um ódio figadal do Prefeito, simplesmente por ódio à burguesia que o Sr. Jonas Modesto Braga representava para ele.

Espeto era cria da cidade e conhecia a história de todos dali. Gozava de muito respeito perante a sociedade e possuía inteligência acima da média. Era, enfim, um homem muito perspicaz e observador.

E assim Maninho, continuou ele, outra atitude não poderíamos esperar de Marques; e concluiu: ele sabotava o time, perseguia o craque, Fubazinho, para prejudicar a atuação do time, desmoralizar o prefeito e arruinar sua carreira política, esperando que o partido extremista do Sr. Tobias assumisse a Prefeitura Municipal.

Diante disso, chamou os dois jogadores de volta e perguntou a ambos quais as modificações entendiam que ele deveria fazer para melhorar a performance do time. Fez o mesmo com os olheiros.

Colhidas as informações, já no treino com bola dividiu os coletes promovendo algumas alterações – todas certeiras.

A zaga seria formada por Casagrande e Senzala. Mocambo seria o segundo homem de meio de campo, em razão do passe acertado, do vigor físico e a forte marcação.

Sobrado, que era lateral-esquerdo, mas vinha atuando deslocado na lateral-direita, voltou a sua posição como titular, e passou a destruir pela esquerda, cortando por dentro e por fora no ataque, desconcertando os marcadores adversários.

Progresso, que jogava à frente, no meio de campo, substituindo Fubazinho na criação e na chegada, passou para a lateral-direita, sua posição de origem.

O time mostrou uma evolução muito grande já no primeiro jogo, e acabou sendo o campeão da temporada, mas a conquista veio apenas na última rodada, quando conseguiu ultrapassar o Dínamo de Amendoeira no jogo que valia seis pontos. Apesar da enorme diferença aberta pelo Dínamo, quase impossível de alcançar nos tempos de Carlos Marques à frente do clube, o trabalho de Maninho surtiu efeitos.

Fubazinho, que passou a jogar um pouco mais solto, escalado do jeito que gostava de atuar, mas com o compromisso de não descuidar da marcação, foi artilheiro do campeonato e o jogador que deu mais assistências. Garantiu o “bicho” da rapaziada nos jogos seguintes e passou a ser ainda mais admirado por isso.

Aquela temporada jamais saiu do imaginário dos torcedores do Benfica Freyre Club, apesar da indiferença da imprensa local e do silêncio sepulcral de seus jornalistas políticos, incapazes e invejosos. Várias gerações conheciam os feitos daquele esquadrão liderado por Espeto e Fubazinho.

Sobrado virou técnico do time, que jamais foi rebaixado ou andou mal das pernas sob sua batuta, como um dia havia acontecido no campeonato aqui lembrado.

Espeto montou uma escolinha de futebol e enviou jogadores para os maiores times de futebol do país, além de manter contato direto com clubes da Ásia e dos Estados Unidos, que vez por outra levava alguns de seus jogadores.

Fubazinho foi jogar no Flamengo, levado por Maninho, que virou auxiliar-técnico do Mais Querido do Brasil. Por lá ele jogou quatro temporadas – duas como titular –, antes de fechar um contrato com o time de um sheik árabe. Ficou rico.

O Prefeito Jonas, já falecido, emplacou a candidatura do seu vice na Prefeitura e elegeu mais de 80% das cadeiras da Câmara dos Vereadores na eleição seguinte.

Hoje, o filho mais velho de Jonas é o maior empresário da cidade; ele gera mais empregos que a Prefeitura e financia vários projetos sociais nos quais é proibido pregar ou impor ideologias políticas. Sua irmã caçula, que foi estudar fora do país buscando a melhor formação possível e se preparar para continuar o desenvolvimento do Município, é a atual Prefeita. É uma gestora muito dedicada e responsável, e elege e reelege quem quiser. Os vários filhos de Jonas são bem sucedidos, criaram uma enorme família feliz e trabalham em prol da comunidade, sem práticas ilícitas. 

João Carlos Marques continuou sendo chamado de o melhor filho que a cidade produzira para o futebol, incensado pela imprensa esportiva local, formada por companheiros de ideologia do Sr. Tobias. Tinha fama de ser alguém à frente de sua época, o que não fazia jus a sua trajetória.

Mas nem todos engoliam essa notícia falsa. Muitos que viveram aqueles tempos diziam que “João Capado” jamais deixou de ser um burro enaltecido por jornalistas de meia-tigela. Capado, um homem invejoso, mau-caráter e saudosista, contador de histórias gloriosas que jamais existiram no plano da realidade, morreu de cirrose pouco tempo depois de passar pelo segundo trintenário.

 


terça-feira, 28 de setembro de 2021

Meu amigo Cadu

 

 

Há duas noites fui visitado em sonho por uma figura bastante frequente na minha infância, um amigo querido de quem eu havia me separado, infelizmente, de forma trágica.

Acordei num sobressalto — era um pesadelo —, mas as coisas foram normalizando e, como não conseguia voltar a dormir de imediato, o banzo me atingiu em cheio.

Lembrei-me de uma das poucas fotos antigas que ainda possuía, já que a grande maioria delas — e não eram muitas — haviam sido consumidas num incêndio dramático ocorrido num cômodo da casa dos meus pais, quando eu ainda era jovem.

Éramos amigos desde sempre, e a foto era uma pose do time de futebol que formamos para realizar um sonho de infância.

Entrávamos na adolescência. O cenário era a quadra onde, minutos depois, disputaríamos nossa primeira final. Perderíamos de dois a um para um time mais organizado, mais entrosado, e com mais investimentos, se considerarmos a realidade daquele bairro, cujos moradores, em grande maioria, eram operários.

Ele estava lá. Aliás, nós estávamos lá. Felizes, sorrindo, agachados e abraçados, radiantes com o que havíamos conquistado até ali.

Poucos anos depois, Cadu e eu acabamos nos separando por contingências da vida. Mudamos de colégio, ele foi morar com a avó em outro bairro, porque era mais próximo ao trabalho que arranjou. Mesmo assim, continuávamos fazendo uma grande festa nas poucas vezes em que nos encontrávamos.

Ele era moreno claro, olhos verdes, usava corte baixo no cabelo castanho e tinha braços compridos, de macaco. Gostava de usar boné e roupas largas, bastante coloridas, e num desses encontros me surpreendeu quando vi que aquele bigodinho ralo que nasceu bem cedo já estava parecendo um guidão de bicicleta antiga.

Na última vez em que nos vimos, marcamos encontro numa boate, por telefone de disco. Contávamos com mais de dezoito e fomos tomar cerveja e uísque falsificado. A certa altura, ele me chamou para ir ao banheiro e puxou um sacolé com cocaína. Eu ainda estava espantado quando ele arrumou duas lacraias com rara destreza, naqueles pedaços de mármore colocados estrategicamente nos cantos dos banheiros, e disse que uma era minha. Eu disse não, ele ficou puto no resto da noite e acabamos perdendo contato para sempre.

Infelizmente, poucos meses depois recebi a notícia de que ele, por não ter dinheiro para bancar o vício, e já endividado com os traficantes, começou a fazer serviços de motorista para eles. O resultado foram os quinze tiros tomados numa emboscada feita por uma quadrilha rival. Seu corpo ficou todo perfurado, e ele ainda estampou a capa do jornal do dia seguinte, ficando conhecido como um dos cinco traficantes fuzilados numa guerra de quadrilhas em Niterói.

No sonho, ele vinha correndo pela rua e eu estava na porta de casa. Disse para eu ir para o portão de trás, queria falar comigo, mas não poderia ser ali porque dois homens armados o perseguiam.

Entrei em casa e voei para os fundos. Chegando lá, ele me entregou uma pistola sem munição e um pacote com drogas, tirado de dentro da bermuda. Pediu que eu guardasse e que voltaria mais tarde para pegar. Afirmou que aquilo jamais se repetiria.

Enquanto eu estava atônito, sem acreditar no que se passava, os homens chegaram. Mandaram-me entrar, fechar o portão e não voltar.

Fuzilaram meu amigo ali mesmo, impiedosamente. Foram disparados quinze tiros.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O Chuveiro de alkingel

 

Tempos difíceis nunca implicaram letargia na vida de Dione Ismit de Souza. Enquanto a maior parte da população sofria atônita com a pandemia do Covid-19, absorvendo as notícias apocalípticas veiculadas nas redes sociais e na TV pela grande mídia arcaica e prostituída, ele procurava soluções e lutava para patentear, o mais rápido possível, seu revolucionário “chuveiro de alkingel”, que sonhava ver instalado em cada unidade das redes de supermercado pelo país e, quiçá, em cada estabelecimento comercial do mundo livre.

Arranjar um investidor foi o mais difícil, pois o dinheiro circulante estava correndo para as mãos das maiores empresas e conglomerados nacionais e mundiais, dada a estrutura que possuíam para atender às demandas, com observância do protocolo exigido e repetido como mantra por especialistas, políticos, jornalistas e histéricos.

Douglas Castro foi o investidor, e o produto fez um estrondoso sucesso, especialmente entre os que vivem a melhor idade. Os idosos, esses meninos crescidos, faziam compras a conta-gotas e formavam filas nos boxes coletivos para se imunizarem com o álcool milagroso, da raiz do cabelo – quando os tinha – às plantas dos pés. Não demorou muito, os anciãos passaram a levar consigo os netos, que iam se divertir nos chuveirões coletivos.

Comemorando a ideia revolucionária, especialistas da área da saúde e de humanas, muito entendedores das ciências, surgiram aos borbotões, e de pronto passaram a discutir a eficácia desse método de tratamento e de combate à doença. Pulularam palestras e debates na mídia e na academia, entre pessoas com entendimento consensual; artigos acadêmicos bajulatórios dirigidos ao produto foram escritos; e revistas publicaram inúmeras matérias. Tudo foi compartilhado incansavelmente nas redes sociais e replicado em blogs e em colunas de entusiastas da pandemia. ONGs comprometidas com a promoção de um mundo melhor defenderam combater o vírus chinês causador da moléstia com um chuveirão em cada recôndito desse mundo de ai meu Deus. A empreitada, logicamente, estava vinculada a doações milionárias, pois ninguém é de ferro.

Como estância lúdica de imunização, o chuveirão virou um local de sociabilização, sendo palco de encontros com hora marcada e tudo. Com efeito, além da população infantil e da terceira idade, a novidade também conquistou a paixão e a adesão dos histéricos, que não saíam de casa se não tivessem fortemente protegidos.

Quando os shoppings centers aderiram ao projeto, a euforia das pessoas causou inconvenientes escorregões e estabacos nos alegres e afoitos candidatos a alcançar o milagre, mas isso foi rapidamente contornado com a instalação de pisos antiderrapantes especialmente desenvolvidos para esse nicho de mercado.

Depois do piso especial vieram as máscaras apropriadas para usuários do chuveiro; e com o mercado em franca expansão, quem pegou carona na ideia foi a dupla visionária Nico e Neco — dois desmiolados, famosos nas redes sociais por promoverem brincadeiras edificantes numa banheira de nutella. Eles criaram modelos de banheiras e piscinas de álcool em gel, para aluguel ou vender, para instalação em clubes, em condomínios, em brinquedotecas e afins, e em festas nababescas de casamento, de aniversário e também nas comemorações de final de ano, fossem realizadas em lares ou em empresas.

A seguir surgiram as máscaras de segunda geração, ainda mais duráveis que as anteriores, e que permitiam aos usuários se refastelarem nas piscinas por mais tempo, sem deterioração do material.

Essas soluções deram tranquilidade aos governantes que, devido à alta periculosidade do vírus — cujos estragos eram destacados a cada minuto e segundo no noticiário —, determinaram o fechamento de praias, parques e praças. Por outro lado, também permitiram o endurecimento no trato com os negacionistas fascistas que praticavam desobediência civil e ideológica. Com pulso forte, o Estado, castigou-os física, psíquica e financeiramente; esses perniciosos que sequer deveriam ser catalogados como seres humanos.

O Presidente, que era também um negacionista, logicamente foi alijado de seus poderes em tempo, e não pôde determinar regras comportamentais à população em razão de inúmeras decisões das Cortes de Justiça, devidamente alinhadas à ONU.

Quando os mais abastados começaram a instalar chuveiros e boxes de álcool em gel nos banheiros e nas entradas das residências, a fim de higienizar moradores e visitantes, não demorou a virar exigência estatal. A medida visava a contornar o problema gerado com a proibição de visitas decretada pelos governadores de todos os entes federativos, o que gerou a indignação de parcela significativa da sociedade. O controle seria feito pelas Agências Reguladoras Estaduais de Visitação, cujo escopo era distribuir cadernetas que conferiam aos cidadãos o direito a até seis visitas anuais, adstritas às zonas territoriais onde se encontravam suas residências. Os locais de visitação, logicamente, deveriam estar equipados com chuveiros, banheiras ou piscinas; e para receber o vale-visita, o contemplado deveria ser vacinado — àquela altura, duas doses por mês — e portar o chip de controle de movimentação introduzido no corpo, uma ideia revolucionária chinesa. A pandemia já durava considerável número de anos, e todas essas medidas constavam numa Agenda da Organização Mundial de Saúde, liderada por um matemático guatemalteco.

Por outro lado, era concedido livre trânsito às autoridades, e apenas a elas, por serem muito bem capacitadas para o enfrentamento à ameaça real de erradicação da vida humana, culpa dos próprios humanos, conforme relatavam especialistas.

Os negócios da “Ismit In Gel” chamavam a atenção de empresários e de autoridades nacionais, vinculados ao governo único e global exercido há alguns anos a partir da ONU. Havia o interesse na aquisição da empresa, para adaptação e enfrentamento de outras ameaças iminentes de extinção da vida humana, fosse através de novos vírus mortais manipulados por cientistas autorizados por países democráticos, fosse pelo aquecimento ou pelo resfriamento do planeta, conforme a alteração das estações climáticas e dos pareceres da comunidade científica ligada ao governo único. Por isso era necessário adquirir suas patentes e adequá-las para o combate às novas ondas de mortandade.

Dispostos a fazer qualquer coisa para tomar os negócios de Ismit para si, com um não como resposta, a patente foi imediatamente quebrada, sob a alegação de se tratar de serviço essencial de manutenção da vida humana; e ele logo percebeu que não seria socorrido pelo direito de propriedade, em face da colisão com os princípios relacionados à promoção dos direitos humanos, conforme mostrava a jurisprudência dominante.

Mas Dione Ismit havia sido prudente e possuía uma carteira diversificada de investimentos; por isso não quebrou na cepa. Porém, ao tentar encarar aqueles que o prejudicaram, foi perseguido, humilhado e levado à falência por decisões judiciais e fiscalizações constantes. O Estado passou sobre ele como um rolo compressor. Atarefado demais, não se cercou dos cuidados necessários para enfrentar as grandes transformações geopolíticas ocorridas nos últimos tempos.

Não durou muito. Morreu de repente, de desgosto, apesar de aparentemente ter contraído uma doença degenerativa que acelerou, e muito, o processo — e não houve junta médica que explicasse.

Seus filhos foram mais espertos. Cresceram progressistas num lar burguês conservador. O pai investiu pesado na educação deles, mas não atentou que seus herdeiros se distanciavam dos valores que considerados inegociáveis pelo pai. Estava atarefado demais, como foi dito.

Os rapazes viraram burocratas; aderiram à religião estatal e perseguiram com afinco quem quer que estabelecesse empreendimentos não aprovados pelas autoridades ou que a elas não obedecesse, independentemente do teor de suas decisões.

Infelizmente, ao final, foram também tragados pelo sistema. Acusados de corrupção, morreram executados, pois a revolução se alimenta dos próprios revolucionários.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Influenciadores decadentes



Surge uma nova casta, formada por pessoas iracundas, um chorume criado pelas redes sociais, sob a alcunha de influenciador digital da terceira via. São “profissionais” que já caíram em ostracismo depois de possuírem, em regra, muita relevância por detatacerminado período.

Aparentemente, por incapacidade própria, não souberam lidar com o sucesso e a vaidade; e pior ainda administram o fracasso.

Há muitos desses, mas abaixo serão tratados apenas aqueles que iniciaram seus passos junto ao incipiente movimento conservador no país e aos adeptos do espectro político da direita, resultado da revolta contra a espiral do silêncio em que os conservadores foram envolvidos durante os anos de roubalheira e vergonha protagonizados pela esquerda no poder (cujos frutos amargos colhemos sem previsão de acabar, em razão da ampla infiltração).

Tais personagens, em verdade, ganharam postos e prestígio, mas foram incapazes de se manter no topo, não fidelizando os seguidores que foram conquistados apenas por defenderem as ideias que, sem justificativa plausível (ou quiçá por algum tipo de ameaça ou oferecimento de vantagens desconhecidos), passaram a ofender de uma hora para a outra.

Alguns foram abandonados pelos verdadeiros produtores do conteúdo que apresentavam e tiveram que lidar com a própria deficiência cognitiva para continuar seu trabalho. Como não poderia ser diferente, falharam fragorosamente na abordagem de temas que não dominam. O público mais qualificado percebeu a farsa e se afastou, restando-lhes apenas gritar e xingar os agora desafetos.

Outros, por vaidade ou inveja, aparentemente traíram as convicções que os levaram ao sucesso. Alegando que "pensam com a própria cabeça" (o propriomiolismo), passaram a ofender seus companheiros de viajem, em especial os mais capacitados, pois não se dignam a olhar para baixo, apenas atiram para cima.

Interessante observar que todas essas subcelebridades que ascenderam e decaíram meteoricamente, atraíram para si espécies de peixes-piloto que buscavam ascensão profissional ou financeira; e eles não se opuseram porque é bom para sua imagem manter a panca de influente entre os influentes. Os peixes-piloto, como desde sempre foram personas irrelevantes, seguiram-nos forçosamente ou até mesmo por desconhecerem outro caminho.

Voltando aos influenciadores decadentes, a perda de likes, de joinhas e de comentários babaovísticos forjou pessoas frustradas, que não reagiram bem à irrelevância que já era esperada pelos conscienciosos. Aliadas à imaturidade, essas circunstâncias as levou a protagonizar situações vexaminosas e passíveis de dura repreensão pela baixeza de certas ações que levaram a efeito.

Como diria Fausto Silva, a fauna (desses pseudo-qualquer-coisa) é grande e abarca desde editores de livros a políticos, passando por figuras públicas, analistas políticos, músicos, chargistas, portadores de diplomas de Filosofia, publicitários, notórios trambiqueiros, jornalistas, funkeiros e profissionais das mais variadas áreas.

Espera-se que a birra não os conduza a aderir à escumalha que pretende enterrar o país de vez com o seu projeto de poder.

Todos seremos vítimas, com a exceção dos amigos do rei, mas uma coisa é mais certa que as outras: a revolução devora seus filhos, e normalmente os primeiros a sucumbir são aqueles que cerraram fileiras com os que ocupam o poder, para não se verem tentados a tomarem-no para si.

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista


quarta-feira, 21 de julho de 2021

O Vampiro

  

Marcella Policarpa, segunda filha dos Almeida – depois ainda viriam os meninos, Viriato Jr. e Pompeu –, conheceu Augustinho no verão de 1990, num sábado de sol, na praia lotada. A moça, bobinha para os dezoito recém-completados, recheava com pujança a peça do recatado maiô que sua mãe, Lucrécia, católica tradicionalíssima, impunha a ela e à irmã. Morava no mesmo bairro da praia e tinha saído com as amigas de colégio — os pais a haviam deixado ir naquele dia, excepcionalmente, porque não puderam viajar para Araruama no fim de semana, já que dona Anastácia, a avó paterna, havia adoecido e precisava do filho e da nora na capital. Como condição, teve que levar os irmãos mais novos, de onze e seis anos.

Augustinho fumava maconha com sua gangue de desajustados quando, de longe, avistou a delicinha. Feio de doer, disse para si próprio que tentaria faturá-la, sem saber que ela, que até ali só tivera paixões platônicas, estava prontinha pro abate.

Ele alcançou Cella – assim era chamada em família – por intermédio dos irmãos. Após observá-la levando-os à beira do mar e admoestando-os sobre seus perigos, ele se aproximou e começou a fazer estruturas disformes com a areia molhada sobre a areia seca. Olhou para as crianças, disse que estava construindo um castelo e perguntou se não queriam ajudar. Eles concordaram; ela achou o gesto simpático e ficou aliviada ao ver que as crianças ficariam ocupadas com a “construção” e o mar não representaria uma ameaça.

Meia hora depois, ele entregou os meninos, que trazia pelas mãos; ela conversava distraída e nem atinou que o estranho poderia tê-los levado consigo. Mal sabe você, caro leitor, que verdadeiro sequestro ocorreria tempos mais tarde, não da forma descrita na tipificação penal: o bom senso, o ânimo, o sentido de união e até valores de alguns membros da família seriam sequestrados por aquele psicopata.

Ele agradeceu por confiar-lhe os anjinhos. Lamentou devolvê-los, mas precisava ir, pois morava na periferia e estava tarde. Perguntou onde estudava; o que fazia; e se poderia encontrá-la novamente. Ela respondeu que sim, poderiam se encontrar; estava no último ano do Santo Ignácio, no turno da manhã; às terças lanchava no Burgão da Praia, lá pelas três da tarde, e às quintas pegava um cineminha e depois ia tomar sorvete na lanchonete Positano. Completou afirmando que só ia à praia no meio da semana, e com a irmã mais velha, quando ela estava de folga.

O caboclo pensou longe nesse momento. Conheceu menina de família estruturada, respeitosa e respeitável, totalmente diferente das barangas, hippies e drogadas que costumava frequentar; e teve a sensação de que valia o investimento, pois certamente obteria vantagens no futuro. As informações ficaram gravadas na mente daquela figura com memória de elefante, faro de cão e rapinagem de águia; naquele momento ele creu que havia acertado o milhar. Investiria para buscar ajuda moral e financeira por toda a vida. — exatamente o que aconteceu, como será contado adiante.

Encontraram-se algumas vezes e a conquista não foi difícil. Começaram a namorar às escondidas, mas, observando desconfiada as saídas rotineiras, a mãe exigiu que levasse os irmãos ou não sairia mais. Ela levou, e as crianças, que já lhe eram simpáticas, também foram seduzidas pelo Don Juan do subúrbio. Nada contaram à mãe.

Quando Cella levou Augustinho para conhecer os pais, o caminho estava aplainado: a moça, apaixonada; os irmãos menores, cúmplices, fizeram lobby em seu favor; e o sogro foi conquistado de cara. A sogra, vendo o marido entusiasmado e a filha feliz, não ousou se opor, apesar da velha pulga incomodar atrás da orelha.

Augustinho se afastou dos amigos e parou de fumar maconha, mas continuou tomando álcool destilado escondido. O cheiro disfarçava mascando cravo; os olhos vermelhos e esbugalhados, características de quando estava bêbado, passavam despercebidos diante das guardas arriadas; a fala enrolada também não chamava a atenção porque era naturalmente assim.

Não demorou muito, foi marcado o casamento. A notícia das bodas foi comemorada por quase todos, sendo as raras exceções: a mãe, que continuava incomodada sem saber por que; o menino mais velho, Viriatinho, agora com doze, quase treze anos, que sentiu que a irmã mudou para pior desde a chegada do cunhado; o noivo da irmã, Lurdinha, a primogênita do casal, que o achava um canalha; e uma tia bastante vivida que não gostava da aura dele, mas suas opiniões não eram respeitadas por ser uma porra-louca. Qualquer outro que percebeu aquele exemplo clássico de alpinismo social calou-se para sempre, e o enlace correu naturalmente.

A noiva fez o enxoval sob a gerência da mãe; o pai patrocinou tudo, pagou das taxas e emolumentos até o aperitivo final da festança, providenciando, ainda, convites, flores, aluguel do salão e até o terno do pai do noivo — não fosse assim, o velho não compareceria.

O noivo, da sua parte, levou para o casamento o peru e uma dívida de cinquenta cruzeiros de cana, cerveja e fichas de sinuca que estavam penduradas há meses no Bar e Sinuca do Seu Nicanor.

Foram morar numa das casas que Seu Viriato um dia deixaria de herança para os filhos, e que alugava para ajudar a compor a renda familiar.

Em menos de um ano nasceu José, o primeiro filho do casal, com síndrome de down. A falha genética foi descoberta no ultrassom — exame de translucência nucal — e Augustinho tentou de tudo para convencer a esposa a abortar. Com muito custo, ela considerou assassinar o filho em seu ventre, mas foi demovida do ato abominável pela radical contrariedade da mãe, que ainda exercia alguma influência sobre ela.

Após o nascimento, o pai mal disfarçava o desprezo pela criança. Porém, percebendo o carinho e os cuidados que os avós lhe dispensavam, mudou o comportamento, encarando a situação sob nova perspectiva. Acostumado a fingir, representou a personagem de um pai exemplar, com o intuito de obter vantagens. Passou a pedir dinheiro ao sogro, alegando que não conseguia cobrir os gastos com a criança, e ato contínuo começou a voltar à casa de madrugada, chegando até a agredir Cella fisicamente algumas vezes. Ela, logicamente, escondia tudo da família.

O genro explorou a bondade do sogro até ver a documentação da casa transferida para seu nome e o de Cella, que algum tempo depois faleceu de forma repentina e misteriosa, acometida de moléstia que nem uma junta médica conseguiu diagnosticar.

Certo dia, alegando que não reunia condições de criar José, Augustinho entregou o menino à sogra, prometendo que não o abandonaria por muito tempo; queria apenas acertar o rumo após a desgraça que se abateu sobre sua vida. A avó queria isso mesmo, apesar de saber que acolheria o neto num lar onde já não reinava a paz, pelas inúmeras brigas entre ela e Viriato por causa do genro que o marido tanto amava — Viriato impediu a exumação no corpo de Cella para descobrir a verdadeira “causa mortis”; não queria ferir os brios do viúvo, que sofrera a perda da esposa, com acusações infundadas. O homem sequer observou o comportamento do adolescente Viriatinho, que não parava em casa e dava sinais de envolvimento com álcool e drogas; nem o afastamento dos outros filhos.

Augustinho, pilantra que só, conseguiu vender a casa através de um trambique, pegou o dinheiro e ganhou o mundo. Jamais se soube dele novamente.

O sogro, amargurado, mas sem nutrir maus sentimentos contra o genro, teve morte súbita, sentado, olhando o tempo. Lucrécia viveu sem viver enquanto cuidava de José, preparando-o para levar uma vida dentro da possível normalidade, sem cuidados excessivos e desnecessários. Aguentou até ele atingir a maioridade e logo em seguida sucumbiu.

Coube a Lurdinha a guarda do rapaz após o passamento da mãe.

Apesar de tudo, José era uma lufada de frescor na vida dos tios e, aos trancos e barrancos, agregava os tios nas reuniões familiares, mantendo aproximados os cacos que restaram daquela família que um dia fora estruturada, invejável e feliz.

 

 

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

A triste e relevante história das Conceição

   

Dora Lúcia da Conceição, a Dorinha, era gêmea de Maria Lúcia da Conceição, a Maricota. Eram as únicas filhas da D. Conceição, que socorria pelo nome de Eletildes Lúcia da Conceição — procure abstrair, caro leitor, as confusões causadas pelos nomes das “Lúcias da Conceição” —, uma preta retinta que coxeava da perna direita.

Mulher digna, religiosa e prendada, vestia-se com recato e trazia sempre um lenço à cabeça que combinasse com os vestidos compridos. Cortou um dobrado para criar, sozinha, as meninas, pois o pai delas, um pescador galego metido a oficial da Marinha, cometeu a gentileza de sair para comprar cigarros quando ainda não tinham completado o nono mesversário e jamais retornou à casa para infernizar a vida de quem vivia ao seu redor, como era do seu feitio.

Empregada doméstica — cozinheira de forno e fogão —, ela achava que sofria muito quando encontrou um alçapão no fundo do poço: foi despejada da meia água em que morava com as filhas no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo, e na sequência foi impedida de levar as meninas para viverem com ela, em Niterói, no quartinho 3x2 oferecido pela patroa — oferta feita, como se vê, mais para encerrar os atrasos costumeiros da empregada que para promover a prática cristã de estender as mãos aos necessitados.

Sem alternativas, foi viver na casa dos patrões e deixou as meninas sob os cuidados da avó, D. Lúcia da Conceição — prometo ficar quieto dessa vez —, e de duas tias desempregadas, Veralú e Analú, ambas Conceição, que viviam com a mãe, sustentadas pela pensão da velha, que andava mais para lá do que para cá.

O trabalho duro se transformou num regime semiescravo, pois era a primeira a acordar e a última a se recolher; não tinha folga, não recebia dispensa nem tirava férias, algo inconcebível para sua patroa, a socialite Nonata Mascarenhas Paranhos, a Natinha Paranhos, que pagava os direitos da empregada com o dinheiro contado.

Recebendo parcas visitas da mãe, as meninas foram crescendo. Sobre o pai, acreditavam que era um herói da Marinha de Guerra, morto em alto-mar enquanto salvava os tripulantes da Corveta em que servia, durante uma tempestade. Era o que lhes contara a mãe, e os familiares tiveram o bom senso de não desmentir.

Numa triste sequência temporal, primeiro faltou a avó e logo em seguida foi a vez da mãe, em exatos dois meses. As gêmeas, contavam com onze anos, cinco meses e dez dias, e em meio ao sofrimento foram afastadas violentamente.

Natinha Paranhos tratou logo de dividir o espólio de D. Conceição: levou Dorinha para sua casa e despachou Maricota para ajudar uma prima porra-louca que vivia com a mãe, D. Durvalina, numa chácara em Saquarema. As tias das meninas ensaiaram uma reclamação, mas Natinha puxou quatro notas de duzentos reais e, despejando dois lobos guará na mão de cada uma delas, nada mais ouviu.

As meninas sofreram com a adaptação. Emagreceram e ficaram amuadas por um bom tempo; só redescobriram a felicidade no dia em que se encontraram numa confraternização organizada por Natinha para seus parentes. Mas não estavam ali para brincadeiras ou matar saudades, e sim para cuidar dos preparativos, da condução do convescote, da louçaria e das acomodações dos convivas.

 Para a sorte de ambas, havia ao menos duas dessas confraternizações de família por ano, e foi num desses encontros que Maricota, a mais esperta, levou anotado o número do telefone da casa de Deca, a prima de Natinha Paranhos, e o entregou à irmã, para se falarem quando sentissem saudades. Já na segunda ligação, porém, a sonsa da Dorinha foi descoberta e levou uns catiripapos e um castigo por desperdiçar os pulsos de telefone da patroa — a reprimenda de Maricota foi mais suave, feita aos risos.

Alguns anos se passaram e veio o falecimento de D. Durvalina. Deca, que era homossexual, resolveu morar numa comunidade de lésbicas em Friburgo, e para evitar constranger Maricota — que era religiosa como a falecida mãe —, dispensou a moça. Antes, porém, entregou-lhe generosa soma de dinheiro como sinal de gratidão pelo carinho com que cuidou dela e da mãe durante aqueles anos.

Maricota voltou a Niterói para assumir um emprego que Dorinha arranjou em segredo, na casa de D. Josefa Militão, amiga de D. Miguelina Mascarenhas, mãe de Natinha Paranhos. A idosa, que havia sofrido uma queda e precisava de cuidados especiais, ficou encantada com a moça, que chegou para ficar pouco tempo, mas permaneceu até a morte da patroa. Então, a filha de D. Josefa, Carla Seabra, moradora da Tijuca, a contratou; e foi na nova residência que Maricota conheceu o futuro marido, um porteiro do condomínio que trabalhava no horário noturno.

Carla Seabra, muito satisfeita, só dispensou Maricota anos depois, para trabalhar para seu filho do meio quando ele foi pai pela primeira vez, porque não confiava na nora para cuidar do neto. A nora, carne de pescoço, não ficou mais de um ano com Maricota, e a despachou para trabalhar com uma prima que morava na Lagoa.

Com tantas mudanças, Maricota angariou mais experiência que Dorinha, que trabalhou na mesma casa por décadas. Conviveu com milionários descolados, dotados de “consciência social”, daquele tipo que banca a educação da empregada ao mesmo tempo em que a explora nos horários, ou a leva em suas viagens para cuidar do café pequeno, como crianças, lavagem de roupas, despacho de malas etc. Maricota trabalhou para burro, mas fez faculdade de contabilidade. Nunca exerceu a profissão, embora tivesse o diploma de pêlo de cordeiro, presente da patroa, enquadrado na parede.

Dorinha completou o segundo grau. Foi na escola que conheceu Feliciano, seu marido, responsável pelos serviços gerais da instituição e o homem que realizou todos os seus sonhos, que eram simples. Ele chegou a admitir que Dorinha levasse a D. Durvalina para morar em sua casa depois que Natinha decidiu enfiar a mãe num asilo — haviam chegado o ocaso da anciã e a necessidade de muitos cuidados, e justamente na época do nascimento do primeiro bisneto de Natinha.

Quando nasceu a sua neta, Dorinha pediu a aposentadoria, mas Natinha, mandona que só, não aceitou. Concordou em diminuir o horário de expediente, mas exigiu que continuasse trabalhando em sua casa para coordenar o serviço das demais empregadas, além de comparecer em algumas recepções do fim de semana, quando seria remunerada por fora. A situação, porém, não durou muito. Bastou encontrar outra moça capaz de realizar o serviço que Natinha a dispensou sem maiores justificativas.

Dorinha ficou satisfeita. Enfim, havia chegado a hora de curtir a vida ao lado do marido. Estavam sozinhos, pois os filhos casaram e ganharam o mundo. Para seu azar, porém, Feliciano adoeceu, e coube a ela cuidar de mais um doente dentre tantos que cuidou no curso de sua vida dedicada ao próximo. Aquela, aliás, parecia uma sina dos membros da família Conceição.

Maricota, aparentemente, teve maior sorte. Após se aposentar, ela e o marido, que já estava aposentado, compraram uma casa no interior de Maricá, perto da praia — cerca de vinte e cinco minutos de carro —, e um Fiat Uno conservadão. Como o Senhor não os havia abençoado com filhos, pretendiam viver naquele paraíso sozinhos até o fim de seus dias.

Mas o destino prega as suas peças...

Oito meses se passaram e Maurício, esse era o seu nome, teve morte súbita, consequência de um aneurisma cerebral que sofreu enquanto limpava os caranguejos e tomava caipirinha.

Feliciano faleceu cerca de dois anos depois, já muito castigado pelo câncer.

Maricota, que havia voltado para São Gonçalo, perguntou à irmã se não queria viver com ela em Maricá. Disse que a casa ainda estava lá, meio abandonada, servindo apenas para alugar por temporadas. Poderiam ver gente nova, ir à praia, à lagoa..

Dorinha aceitou e lá se foram as duas viverem juntas novamente, e passaram alguns anos naquela vidinha sem graça, com a rotina quebrada apenas nos dias de Feira e de Missa.

Certo dia, Dorinha estranhou que a irmã tivesse acordado tão cedo, pois não estava no único quarto da casa, onde dormiam. Ainda não eram três da manhã. Ela se levantou para fazer o xixi da madrugada e, ao caminhar meio trôpega pelo corredor, deparou-se com o corpo de Maricota caído, com uma poça de sangue ao lado, escorrido da cabeça, provavelmente machucada ao bater na quina da mesa de jantar enquanto desabava, em razão do infarto fulminante posteriormente diagnosticado.

Quase sem acreditar, e apavorada, Dorinha sentiu uma dor lancinante no peito e foi se alojando, lentamente, ao lado do corpo da irmã até cair igualmente morta, de infarto, logo após, quem sabe, perceber que viver não faria mais nenhum sentido, pois não lhe havia restado mais ninguém para cuidar.

 

 

 

Fernando César Borges Peixoto

Advogado, niteroiense, gosta de escrever e, de certa forma, é um saudosista